17 de out. de 2004

Cidadania

Lendo o JB jbonline.terra.com.br de hoje (17.10.04) encontrei na coluna do Renato Lemos, na página B2 do Caderno B, texto que resume o que eu ando tentando entender sobre quem é criminoso e quando. Transcrição do texto de Renato Lemos no JB de 17.10.04.

"O Rio está pedindo penico. Pedindo não, negociando

Sei não, mas desconfio que andam faltando bons redatores entre os rapazes do The Independent. Ou andam preguiçosos demais. Diante de um Rio de Janeiro de meter medo em diabão de filme B, os caras foram pouco criativos na tal matéria que resumiu a cidade com um jargão roubado dos punks do século passado: ''no future''. Mais: ainda sapecaram um título que, salvo engano, usaram também para ilustrar a Bogotá de uma década atrás. Ou, com pequenas alterações nos substantivos, a Bagdá de outro dia mesmo. Merecíamos mais, cacete. Cocaína e carnificina, as duas palavrinhas atreladas, são rima tão fácil que parece dever de casa de garotinho. Ou garotinha. Mas, apesar dos clichês jornalísticos, nem tudo é criticável na reportagem do jornal inglês. Pelo contrário: o negócio por aqui está fedendo de fato. Uma m... Uma constatação que, de primeira, sugeriria um título bem mais impactante ao tablóide londrino: Rio de Janeiro is asking for a chamber-pot. Ou, numa tradução de porteiro de boate da Praça Mauá: O Rio de Janeiro está pedindo penico.
Pedindo não, negociando. Aqui, como se sabe, é a terra do diálogo, da simpatia e da hospitalidade. Recebemos qualquer forasteiro com rara camaradagem. Por vezes, elegemos alguns deles também. Somos dóceis e amáveis. Ou cínicos, simplesmente. É esse cinismo - uma espécie de evolução da violência - que anda nos dando uma personalidade perdida desde a criação da bossa nova. Somos simpáticos e cínicos. Camaradas e cínicos. Hospitaleiros e cínicos. Um traço de caráter que atualmente é tão característico do carioca quanto a conversa fiada no botequim ou o chinelo de dedo. O cinismo é a forma mais sofisticada de violência que o Rio produziu. Uma nova ordem. Não ver isso é não enxergar o nosso futuro. E isso, infelizmente, o The Independent não viu.
Vão aí, então, duas cenas cariocas que fazem o Rio parecer o cenário ideal para dramaturgos de texto enxuto e intenções enviesadas. Como David Mamet, por exemplo. Ou, para ficar restrito ao ambiente britânico, Harold Pinter.
Cena 1
Um homem, trinta e poucos anos, anda de terno numa rua quase deserta do Centro do Rio. Carrega uma bolsa. À sua frente, dois garotos, bonés enfiados na cabeça, o acompanham. O homem nem se dá conta do momento em que um dos garotos se vira para ele apontando uma arma.
- Perdeu! Passa tudo.
- Tá legal, mas abaixa essa arma.
- Não quero conversa, passa tudo.
O homem então enfia a mão no bolso e sai de lá com um bolo de notas amassadas, misturadas a um cartão telefônico, duas contas pra pagar, o telefone do cliente da tarde e três balas Juquinha.
- Manda o celular também, p...!
- Meu celular é modelo antigo, acho que vocês não vão querer...
- Isso quem sabe é a gente.
- Então tá.
O homem entrega o celular para um dos ladrões que, ao ver o objeto, faz uma cara de pavor e o arremessa de volta para o dono.
- Pode ficar, tio. Esse aí nem serve pra dar de presente para as crianças.
E, na saída, camarada, ainda deixa um trocado em cima da bolsa. Pro ônibus.
Cena 2
Um homem, quarenta e poucos anos, é parado numa blitz policial (não era falsa blitz) sem a carteira de motorista. Está errado. E ferrado. O PM, solícito, coloca a mão nos seus ombros.
- Vamos ter que levar o carro.
- Levar o carro? Não dava pra multar?
- Multar, nesse caso, dá muito trabalho. A não ser que o senhor tivesse uma outra solução.
- Como assim uma solução?
- O senhor é quem sabe. Eu levanto o problema, a solução é com o senhor.
O homem coça os bolsos.
- Eu só tenho dez merréis, brother.
- Só dez? Não dá para arrumar mais não?
- Só tenho dez, sabe como é, tá ruim pra todo mundo.
- Isso tá mesmo.
- E então, vai dez?
- É de coração?
- Claro. É de coração.
- Bom, se é de coração então eu aceito.
E enfia a nota no bolso traseiro de seu uniforme de brim.
[17/OUT/2004]
relemos@jb.com.br"

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